O SEGREDO DE MEU PAI
J.B.Xavier
É novamente Dias dos Pais...Como todos os domingos estou trabalhando, tentando adiantar alguns assuntos profissionais, para que a segunda feira seja menos árdua. Sou advogado – um dos mais reconhecidos da cidade, confesso. Formar-me em Direito foi para mim uma grande conquista com a qual tento enterrar de vez meu passado.
O Dia dos Pais é um dia especialmente duro para mim, e em minha casa todos sabem disso. A despeito da tristeza que me toma nesse dia, toda a minha família afoga-me em felicidade e quase me faz esquecer as razões do meu desencanto.
Mas este ano será diferente! Eu e Deus sabemos que o envelope pardo que repousa sobre minha mesa, e que me foi entregue ontem, dá-me boas razões para isso. Provavelmente ele mudará novamente o rumo de minha vida, desta vez, interiormente.
O envelope traz o timbre de um dos mais afamados escritórios de advocacia do Estado. Resolvi ler seu conteúdo mais uma vez.
“Prezado...”
Mal comecei a leitura e meus olhos pousaram no relógio de mesa. 09:00 horas! Dentro em pouco meus filhos descerão ao escritório para me felicitar, e me dar os presentes que compraram para mim...Eu vi a agitação do pequeno, tentando disfarçar a alegria, quando chegou do shopping center, junto com seus dois irmãos adultos e a mãe. Eles passaram por mim como se nada de anormal estivesse acontecendo, mas o sorriso doce e mal contido no olhar do caçula me avisara de que haveria uma surpresa...
Meus sogros certamente virião para o almoço, como sempre fizeram, e o dia será então consagrado à alegria e à felicidade de ser pai...
Olhei para o retrato de minha formatura na universidade, emoldurado e pendurado na parede à minha frente, e uma grande sensação de vitória me tomou o espírito. Ao seu lado, estava o retrato de minha mãe, já falecida, cujo olhar doce e terno ainda recende ao amor que me protegera, e - apenas Deus sabe como - me fizera atravessar as agruras de minha infância.
Há muitos anos tentei colocar no outro lado de minha foto, o retrato de meu pai, mas a desaprovação de minha esposa e a decepção de meus filhos fizeram-me desistir da idéia...
Meu pai foi um dos homens mais inteligentes que já conheci. Um homem de ação, de emoção arrebatada, de arroubos de carinho comigo e com minha mãe – as duas únicas pessoas sagradas para ele.
Mas, ainda que ele tenha sido o meu ideal de bravura, de coragem e de heroísmo, ainda que eu o ame silenciosamente lá no fundo de meu coração, eu não podia deixar de lhes dar razão por não querer sua foto pela casa: Meu pai foi um fora-da-lei. Um gângster. Um homem rico, poderoso, perigoso e temido por todos no submundo do crime ou fora dele .
Cresci à sua sombra. Era como uma aventura pessoal que eu ouvia as tramas em que ele se metia, juntamente com homens importantes e influentes de todos os setores da sociedade.
Como toda criança, eu idealizava as ações de meu pai, e, pelo padrão de vida altíssimo que levávamos, eu sonhava com o dia em que poderia acompanha-lo em suas “aventuras”. Passei toda a minha infância sonhando com isso, a despeito dos esforços de minha mãe para dissuardir-me dessa idéia.
Cansada da existência imprecisa que levava, logo após descobrir com quem havia se casado, minha mãe elegera como missão de sua vida, impedir que eu me tornasse o herdeiro do legado criminoso de meu pai.
Embora não compactuasse das atividades dele, ela era perdidamente apaixonada por esse homem que a cativara com seus gostos refinados e ao mesmo tempo duros.
Confesso que eu não facilitava em nada sua tarefa, pois, enquanto eu ia crescendo, passei a acompanhar minuciosamente, na medida do possível, as atividades de meu pai, mesmo tendo sido terminantemente proibido por ele de fazer isso.
Passei a infância numa eterna saudade de meu pai. Eu o queria ao meu lado, e chorava nos braços de minha mãe sempre que via o pai de meus amigos os apanharem na porta do colégio.
Em contrapartida, o colégio em que eu estudava era, por assim dizer, “protegido”, de maneira que não havia, num raio muito amplo ao seu redor, nenhum dos tipos de delitos que normalmente rondam os colégios, como traficantes, trombadinhas e quetais.
Muitas vezes ouvi minha mãe, entre lágrimas, dizer a ele que ele não deveria permitir que eu me tornasse um criminoso – palavra que ele detestava.
E assim fui me tornando um adolescente fascinado por meu pai.
Muitas e muitas vezes vi pessoas importantes dos noticiários - políticos, juízes, empresários etc. - freqüentarem nossa casa, onde meu pai costumava contratar músicos da orquestra municipal local para realizar saraus musicais que desenvolveram em mim o músico amador em que acabei me transformando.
Numa certa noite, meu pai chegou em casa diferente. Estava visivelmente abatido, e a primeira coisa que fez foi ordenar a Mário, seu secretário particular que cancelasse o sarau daquela noite. Isso era difícil, pois os convidados estariam chegando dentro de pouco tempo.
Depois disso, ele trancou-se em sua suíte, onde eu me encontrava, admirando os revólveres de sua coleção de armas.
Com medo de ser flagrado com o revólver na mão, corri a esconder-me no “closet” em meio à grande quantidade de roupas, onde fiquei quieto até que mamãe entrou no quarto também.
Pela fresta da grade do respiradouro do “closet”, pude ver meu pai sentado na cama, com o cotovelo nos joelhos e a cabeça entre as mãos, muito abatido.
Minha mãe sentou-se a seu lado, e como sempre fazia, ficou a acariciar-lhe os cabelos, em silêncio, pois sabia reconhecer quanto ele estava com problemas sérios...
- É o Milton – murmurou ele finalmente.
Dr. Milton era o médico da família e seu amigo de infância. Ele subira rapidamente os degraus da fama e da fortuna graças a alguns “arranjos” de meu pai. Um desses “arranjos” resultara no desaparecimento do sócio controlador de um hospital do qual o Dr. Milton era também sócio. Após esse “desaparecimento” ele comprou da suposta viúva, sua parte societária e tornou-se dono do que viria a ser o maior hospital da cidade.
- As coisas não estão bem – murmurou ele da maneira que fazia quando algo realmente grave o afligia.
- As investigações foram reabertas? – perguntou ela com os olhos brilhantes pelo marejar das lágrimas que não conseguia evitar sempre que o via com problemas.
Ele ia responder quando o telefone o interrompeu. Após trocar algumas palavras com Mário, orientando-o sobre como proceder com o cancelamento do sarau, ele levantou-se, passou os dedos pelos cabelos desalinhados e caminhou até a porta. Lá ele parou e disse:
- Eu te prometo que nosso garoto não será como eu! Ele será um homem do qual o país se orgulhará. Será grande e...
Outra vez o telefone o interrompeu e ele saiu apressado, seguido por minha mãe.
Fiquei a pensar no que ouvira. Se dependesse de mim, meu pai estava enganado. Em meus quatorze anos, tudo o que eu queria era ser igual a ele! Eu tinha certeza de que ele resolveria as pendências com o Dr. Milton, como já fizera com tantos outros problemas que já tivera.
Uma das coisas em meu pai que mais me orgulhava, era a sua capacidade de construir alianças fortes. Mesmo porque, cair em desgraça com ele era coisa que ninguém – criminoso ou honesto – desejava.
Ele era implacável com seus desafetos, e extremamente gentil com seus aliados. Essa gentileza gerara ao seu redor uma rede fortíssima de amizades e de emoções misturadas aos interesses, que faziam dele uma pessoa quase inexpugnável à Lei.
Os problemas com o Dr. Milton, entretanto, eram muito maiores do que eu pensava, pois algumas semanas depois da conversa que ouvi na suíte, meu pai foi baleado e morto por ele.
O médico alegou que foi procurado por meu pai, e que este tentava “vender-lhe” proteção. Meu pai teria tentado estrangula-lo depois de machucá-lo seriamente de tanto lhe bater. Então, Após luta corporal, ele o matara com sua própria arma.
A notícia da morte de meu pai, assassinado por um de seus melhores amigos, abalou o país.
A Lei festejou por ter se livrado de um homem incômodo, que segurava a ponta dos tapetes de muitas eminentes figuras da sociedade, mas o mundo do crime ficou chocado. Não com sua morte propriamente dita, porque sem meu pai em circulação, todos respiravam mais aliviados, mas pela traição, que abria um precedente sério na rígida regra de conduta “ética” de lealdade do gansterismo.
O Dr. Milton foi julgado e inocentado da acusação de assassinato, pois seu ato foi considerado pelo júri como Legítima Defesa. Descobriu-se também que meu pai tinha negócios com seu ex-sócio no hospital, e que o matou para cancelar algumas dívidas. Assim o Dr. Milton foi posto em liberdade e viveu ainda por muitos anos.
Apresentado assim, abruptamente, à monstruosidade da traição, indignado e revoltado por ver o assassino de meu pai em liberdade, eu fiquei completamente desnorteado, sem rumo, enquanto minha mãe vivia a me repetir que os violentos não morrem no leito, que eu deveria continuar meus estudos, e ser alguém, porque era isso que meu pai queria para mim.
Após muitas terapias, psicólogos e tratamentos, comecei a reagir e a ponderar que o mundo do crime é um lodaçal de areias movediças onde a traição ronda em constante vigília.
Quando me tornei adulto, decidi que seria policial, e entrei para as fileiras da Polícia Civil, ainda que o que me movesse a tal, fosse o desejo de fazer justiça rápida. Somente mais tarde é que fui dirigindo minha vida aos estudos do Direito.
Finalmente, com o passar do tempo e meu gradual amadurecimento, conheci Cecília, minha esposa, que, mesmo sabendo quem fora meu pai, uniu sua vida à minha e me apaziguou a alma, ajudando-me a superar de vez minha sofrida infância.
Voltei a ler o papel que tinha nas mãos.
“Prezado.... Se o você estiver lendo esta carta, isto significa que estarei morto. Então terei morrido duas vezes. Na verdade morri a cada dia que estive vivo, pelo que fiz ao meu melhor amigo e a você também.. Não peço seu perdão. Apenas espero que tudo tenha valido à pena! A decisão de guardar ou não o segredo que lhe vou revelar, cabe apenas a você. Considere, entretanto, se há necessidade de remexer o passado. Não por mim que já estou morto, mas por você, que ainda tem muito o que viver.
Sim, eu matei seu pai. Matei porque se não o matasse ele me mataria. Sem dúvida que o faria!
Aconteceu que num exame de rotina, eu detectei um câncer maligno em seu cérebro. Para um homem duro como ele, saber que vai morrer não é, de certa forma, uma notícia inesperada.
Eu lhe informei que restava-lhe pouco tempo de vida, talvez uns dois meses, e a única reação que ele teve foi cancelar um sarau de música que havia programado! Santo Deus! Que tipo de homem é esse que a iminência da morte não abala?
Depois ele disse que sua morte tinha que servir para alguma coisa. Disse-me que, já que sua vida havia sido dispersada, então que pelo menos sua morte deveria ser, de alguma maneira, útil. Era você que ele tinha em mente. Era a você que ele queria mostrar que o crime não compensa, e que no crime não existem heróis ou mártires, apenas traição e vítimas.
Ele sabia que mais dia, menos dia, teria uma morte inglória, urdida por algum dos poderosos que com ele negociavam. Então ele veio a mim, trazendo alguns documentos relativos à morte de meu sócio – da qual, confesso-o agora, fui o mentor.
Direto como uma flecha, ele entregou-me seu revólver, ordenando-me que o matasse ali mesmo! Disse-me que havia feito arranjos para inocentar-me de todas as suspeitas, e que eu poderia levar uma vida tranqüila após sua morte.
Recusei-me a fazer o que ele me pedia, mas ele me disse que eu lhe devia isso! Depois deu-me um soco e como eu me recusasse a atirar, ele disse que me mataria de pancada se eu não o matasse. Após apanhar por muito tempo, atirei. Estava acabado.
Morri uma vez quando matei meu melhor amigo, e vivi morrendo a cada dia em que lembrava de você e sua mãe. Eu precisava que você soubesse. Talvez meu espírito encontre paz, se puder lhe devolver alguma...”
Fiquei olhando para o papel, pensando neste último ato alucinado de meu pai. Se com isso ele quisera me dissuadir de seguir uma vida criminosa, ele havia conseguido!
“Bem, meu pai” – pensei – “isso não o redime, mas ao menos me mostra que ao final, eu tive um pai de verdade...Eu estava precisando disso...”
Depois fiquei absorto, pensando na vida tempestuosa que ele viveu. Assim é o crime! Você começa e não pode parar mais. O ódio alimenta-se do próprio ódio...Mamãe tinha razão, afinal: Os violentos não morrem no leito...
Absorto e com a carta póstuma ainda à mão, levei um susto quando meu pequeno garotinho irrompeu pelo escritório gritando:
- Parabéns, papai! Viva! Hoje é o seu dia! Olha só o que temos para você!!
Atrás dele vinham Cecília e os meus dois outros filhos – jovens homens feitos - que me jogaram confete e foram amontoando os presentes no meu colo, enquanto me abraçavam carinhosamente.
A carta escorregou de minha mão, e entre lágrimas, enquanto eu abraçava minha adorada família, lembrei-me do que disse Chico Xavier:
“Ninguém pode voltar ao passado para fazer um novo começo, mas qualquer um pode começar agora para fazer um novo fim.”
* * *
JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 09/08/2008
Alterado em 06/08/2015