ABEMOS PAPA
ABEMOS PAPA
J.B.Xavier
O pontificado de Bento 16 começa com uma significativa vitória: Seus livros desbancaram do primeiro lugar, dentre os livros mais vendidos na Alemanha, ninguém menos que Harry Potter, o bruxinho campeão das livrarias dos últimos anos. O novo Papa colocou 5 de seus mais de trinta livros publicados entre os primeiros 5 lugares dos mais vendidos, empurrando o bruxinho para a sexta colocação.
Brincadeira tem hora! – dirão alguns de meus leitores. Que importância tem isso como vitória? Muita, eu responderia, se considerarmos que os livros de Joseph Ratzinger, ou Bento 16, como escolheu ser chamado, são uma leitura árdua sobre questões complexas puramente teológicas, filosóficas e/ou doutrinárias.
A procura por seus livros tem, a meu ver, três significados imediatos: Muitos desejam apenas conhecer o que pensa o novo Papa. Outros desejam encontrar neles argumentos que apontem em que direção deverá o novo pontífice conduzir a Igreja Católica Apostólica Romana. E outros ainda neles procurarão palavras de conforto e ratificações de suas crenças.
Qualquer das três aponta para uma renovação do interesse em adentrar ao pensamento da própria Igreja, na medida em que se compreende melhor o novo pontífice.
Intelectual de peso, poliglota que domina 10 idiomas, profundo conhecedor e professor de filosofia dogmática, Bento 16, mais do que ninguém, certamente conhece bem a filosofia grega, e, em especial a filosofia de Heráclito resumida em sua frase mais célebre: “Tudo flui!”
“Só a mudança permanece” ensinava Heráclito, em Héfeso, a cidade onde nasceu, quinhentos anos antes de Cristo.
Mas não é preciso ser filósofo, conhecer filosofia dogmática ou dominar tantos idiomas para se concluir que Heráclito tinha razão. Tudo o que existe, em todas as instâncias da natureza - inclusive nós próprios - nasce, cresce, definha e se metamorfoseia.
Entretanto, os críticos e opositores dos cânones da Igreja Católica Romana estão ansiosos com o que parece ser imobilismo, ou, pelo menos, resistência ao progresso, apresentado pela instituição.
Ora, se Heráclito estava certo - se tudo flui - se só a mudança permanece, então certamente a Igreja também se insere neste contexto. Prova disso é que ela existe há dois mil anos, mais do que qualquer outra instituição aberta ao público que já tenha existido. Maçonaria, Rosacrucianismo e outras ordens secretas existem há mais tempo, é verdade, mas não são públicas, sectárias ou dogmáticas.
Governando com apenas três níveis hierárquicos sob seu comando - sacerdotes, bispos e cardeais - o Papa pode se orgulhar de liderar a mais enxuta de todas as hierarquias complexas já criadas pelo homem.
Este é apenas um dos segredos da capacidade da Igreja de se moldar às mais diversas – e adversas – situações ao longo de dois milênios. Um feito extraordinário, sem dúvida.
Paradoxalmente, ela tem passado ao largo da democracia que tanto valorizamos - e sem querer exacerbar os ânimos dos que divergem de minha opinião, fez isso de maneira pujante e sólida. Mesmo os gregos, os inventores da Democracia, não resistiram como império democrático, justamente por levarem o conceito deste sistema de governo ao pé da letra.
Já a Inglaterra, para subsistir como reinado, teve que fazer concessões à democracia, e, durante o século XVII criou um sistema misto de governo, passando de monarquia absolutista à monarquia parlamentarista. Ou seja, o rei detinha apenas parte do poder. A outra parte vinha do povo. Foram imediatamente imitados por outros países, que graças a essa capacidade de adaptação, sobrevivem sob este sistema de governo até os dias de hoje.
Mas a Igreja não é um reino, no sentido material do termo. Nem o Papa é um rei. Inteligentemente, ela foi moldando através dos séculos um discurso híbrido, mas não heteróclito.
Essa homogeneidade do discurso através dos séculos lhe forneceu profundidade, e sua exigência na formação intelectual dos padres lhe forneceu substância. Então, pode a Igreja se dar ao luxo de abrir mão da democracia entre suas fileiras, porque seus seguidores sempre encontraram respostas às suas dúvidas existenciais na fé que essa substância e profundidade lhes forneciam.
Se, por um lado, a ausência de democracia tolhe a criatividade e vicia as decisões, por outro, ela não obriga a instituição a ficar se debatendo entre conflitos infindáveis interdepartamentais com os quais convive qualquer instituição democrática civil.
Bento 16, um conservador radical, talvez ainda mais à direita que o próprio João Paulo 2º sabe, certamente de algumas coisas que passam despercebidas pela maioria dos analistas de plantão:
Ele sabe, por exemplo, que por maior que seja a debandada de fiéis das fileiras do catolicismo romano, eles nunca irão para o mesmo lugar. Ou seja, nunca se aglutinarão em outra igreja única. Ao contrário, irão para as milhares de igrejas evangélicas que nascem todos os dias. Portanto, Bento 16 sabe que essas defecções não formarão uma religião suficientemente forte para abalar a liderança da Igreja Católica Romana sobre o cristianismo.
Ele sabe também que o perigo que em tese representaria para a Igreja Católica Romana a grande quantidade de igrejas evangélicas, na verdade não existe, uma vez que, como já disse, essas novas igrejas jamais se unirão numa frente que possa ameaçar a liderança de Roma. E não se unirão porque essas novas igrejas têm interesses mais imediatos e muito mais ligados a fatores de mercado.
Além disso, elas são formadas justamente por indivíduos que trazem a discórdia em seu âmago, e que têm coragem de discordar. Assim, o paradoxo que se apresenta é bem evidente: O que enfraquece a Igreja de Roma, é, ao mesmo tempo, o que a fortalece!
A questão do futuro da Igreja Católica Romana tem a ver, em certa medida, com a estabilidade do mundo como um todo. É impensável o que aconteceria se esta instituição falisse - “quebrasse” como diriam os marqueteiros de plantão.
Gostemos ou não, ela é o repositório de culturas milenares, de mitos, de arranjos e desarranjos palmilhados pelo homem nos últimos dois milênios. Não há um único aspecto da cultura humana que não tenha sido influenciado pela Igreja de Roma, em algum nível. Suas realizações vão dos mais sublimes ao mais negros capítulos da história humana.
Então, esforçarmo-nos para compreender os destinos desta instituição é também tentar compreender o futuro do comportamento humano.
Todos nós, que de alguma forma nos debruçamos sobre essa questão buscando prever como será o futuro da instituição, temos como parâmetro seu passado e seu presente.
Se analisarmos a questão nos baseando apenas em seu passado, então não há motivos para preocupações. Muitos foram os problemas enfrentados pela Igreja ao longo de sua história, e da maioria deles ela se saiu galhardamente. Não sem ferimentos, é verdade, mas a instituição nunca vacilou em abrir mão de um dedo para não perder a mão.
Como exemplo, desejo citar apenas três episódios que demonstram o grau de adaptação desta instituição cujos críticos estão agora a rotular de”monolítica”:
O primeiro exemplo vem do fato de que sua maior vitória talvez tenha sido ter sua administração central no coração do império que matou seu cristo. Quem poderia imaginar, à época da crucificação, que aquele movimento incipiente de um pregador anônimo de uma colônia insignificante, um dia iria vencer o próprio império, converter seus imperadores e se impor ao mundo como uma nova ordem espiritual, material e comportamental?
Mero acaso? Negativo! Foi caso pensado. Enquanto o judaísmo exigia a circuncisão, os seguidores de Jesus – um judeu - a aboliram. Foi uma concessão e tanto! Os comandantes da ainda pouco importante religião sabiam que o risco de morte advindo da circuncisão era grande devido às condições de higiene da época, e sabiam que ao liberarem seus seguidores desta obrigação, haveria uma significativa conversão à doutrina de Jesus, o Cristo. E foi exatamente o que aconteceu!
O segundo exemplo veio um milênio e meio mais tarde, quando, em termos práticos o mundo era governado pelos papas, que governavam seus governantes. Um novo teste de fogo se impôs à autoridade papal, inquestionável até àquela época.
Monarquias absolutistas estavam se fortalecendo e a Inglaterra era talvez a mais forte delas. Sua aliança com a Igreja era quase simbiótica. Os ingleses já haviam armado cruzadas para livrar a Terra Santa dos “infiéis” e toda a sua nobreza – inclusive o rei – estava subordinada à vontade do Papa.
Tudo correu bem, até que os interesses da Igreja e do rei não mais coincidiram. O choque foi inevitável e a perda para a cristianismo romano foi enorme.
A disputa foi de nível pessoal entre o soberano, Henrique VIII, e o papa. Henrique VIII era católico, mas rompeu com o papa quando este se recusou a dissolver seu casamento com Catarina de Aragão, que não lhe havia dado um filho homem – essencial para a continuação de sua linhagem. Ignorando a decisão papal, Henrique VIII casou-se, em 1533, com Ana Bolena, sendo excomungado pelo papa Clemente VII. O soberano encontrava assim uma justificativa para impedir que o poder da Igreja ofuscasse a autoridade de um rei absolutista. Além do mais, os bens da Igreja passaram para as mãos da nobreza, que apoiava o rei.
O resultado deste choque foi um absurdo prejuízo financeiro e a perda da Inglaterra, uma potencial e quase indispensável aliada. Daí nasceu uma nova religião, o anglicanismo, vigente até hoje no país, cujo chefe é o próprio rei!
Defecções semelhantes aconteceram na Igreja grega, e na russa, onde persiste o catolicismo ortodoxo. A estrutura fisiológica e seus ritos são praticamente os mesmos da Igreja romana, mas o chefe dessas igrejas já não é o papa.
E qual foi a resposta da Igreja Católica Romana a estas perdas? Embarcar missionários nas viagens dos grandes descobrimentos e chegar primeiro que todas as outras aos novos mundos que se abriam. Então, mesmo perdendo a Inglaterra, ela ganhou legiões na áfrica, na Ásia, e principalmente na América do Sul. Perdeu uma Inglaterra de fiéis e ganhou um Brasil. Um saldo positivo, sem dúvida!
O terceiro exemplo de adaptabilidade vem dos Concílios Vaticanos
O primeiro desses concílios, foi convocado pelo papa Pio IX e em 1869 e se estendeu até 1870. O resultado foi comunicado na Sessão III, ocorrida em 24 de abril de 1870, sob o título “Constituição Dogmática Sobre A Fé Católica” Dizia o seguinte:
“Nós, juntamente com todos os bispos do mundo que conosco governam a Igreja, congregados no Espírito Santo neste Concílio Ecumênico, sob a nossa autoridade, apoiados na palavra de Deus, quer escrita quer transmitida por Tradição, conforme a recebemos santamente conservada e genuinamente exposta pela Igreja Católica, resolvemos professar e declarar, desta cátedra de Pedro, diante de todos, a salutar doutrina de Cristo, proscrevendo e condenando, com o poder divino a Nós confiado, os erros contrários.”
Como se nota foi uma chamada à ordem, extremamente autocrática, após o conturbado período medieval e renascentista, onde a instituição expandiu-se violentamente. O mundo de então vergava sob o domínio do imperialismo inglês – “o império onde o sol nunca se punha”.
Então veio o Concílio Vaticano II. O Concílio Ecumênico Vaticano II foi convocado no dia 11 de outubro de 1962, pelo Papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramento deu-se a 8 de dezembro de 1965, pelo Papa Paulo VI.
João XXIII percebeu que caldeira sem válvula de segurança explode.
Flexível por natureza, os textos do Vaticano II foram escritos propositadamente de modo "diplomático", isto é, de modo ambíguo, podendo ser interpretados de várias maneiras.
Foi o teólogo Schillibeekckx quem declarou que os documentos do Vaticano II eram escritos de modo ambíguo e acrescentou: "depois do Concílio, extrairemos desses textos escritos em linguagem diplomática, aquilo que nos for interessante.
Essa ambigüidade proposital demonstra a habilidade na redação "diplomática", e isto, por sua vez, demonstra o alto grau de sintonização que a Igreja tem com o mundo ao seu redor, quando isto é do seu interesse.
O resultado dessa “flexibilização” foi a quase imediata divisão dos teólogos e dos fiéis, quanto à interpretação dos textos do Vaticano II.
Mas há os que seguem a interpretação literal deles. O falecido Papa João Paulo II, e o atual Bento 16 estão entre eles.
Outros querem interpretar os textos segundo "o espírito do Vaticano II", e não segundo a letra. O líder desta corrente, atualmente, é o Cardeal Kasper, bem como o Cardeal Martini, o cardeal Lehman, entre os mais importantes e conhecidos.
Um cisma está se desenhando no horizonte da Igreja de Roma, entre os que defendem o "espírito do Vaticano II", contra os que defendem a sua "letra", e já se fala na convocação de um futuro Concílio Vaticano III.
Grandes mudanças desenham-se no futuro da Igreja. É voz corrente que os defensores do "espírito do Vaticano II " pretendem abolir todas as decisões dos Concílios anteriores e mesmo transferir a Santa Sé para Jerusalém. Algo impensável, mesmo nos momentos mais críticos da instituição. Eles querem também a ordenação de mulheres e o fim do celibato.
O celibato aliás, não tem mais que quinhentos anos de existência e foi fruto de um casuísmo, uma maneira de a Igreja não mais reconhecer os filhos dos papas e cardeais que aos poucos dilapidavam seus bens.
O fato é que essa divisão é tão profunda que, em Roma, se teme que, no futuro e próximo Conclave, ocorra um verdadeiro terremoto que acabe dividindo irremediavelmente a Igreja católica Romana.
Se, entretanto, prestarmos atenção à maneira radical como o Cardeal Ratzinger, sob o beneplácito do Papa João Paulo II, implodiu a frente modernista da igreja brasileira, seremos forçados a considerar que num possível Concílio Vaticano III, talvez esses recalcitrantes cardeais que ameaçam um cisma já não façam parte dos quadros da instituição.
Ambas as partes em conflito concordam, entretanto que a Missa, que foi instituída por Cristo como renovação do sacrifício do Calvário, é um assunto que não pode ser "flexibilizado".
Diante de uma existência cuja história se desenrola à razão de alguns capítulos por século, é forçoso reconhecer que nossa atual geração de analistas está observando a Igreja há muito pouco tempo
Bento 16 tem a mão pesada, e bate forte. Só para se ter uma idéia disso, basta frisar que na década de 90 ele tomou a diocese de São Paulo - a maior e mais “modernista” das dioceses do Brasil e por conseguinte do mundo – e a desmembrou em cinco outras, transferindo cardeais e bispos recalcitrantes para distantes e obscuras localidades e colocando em seus lugares religiosos afinados com a doutrina de Roma. E mais. “Condenou ao silêncio” algumas das vozes mais modernistas e articuladas do movimento modernista da Igreja Católica do Brasil, como Frei Beto e Frei Boff, por exemplo.
Perguntado sobre como está a Igreja neste novo milênio, e como será seu futuro, disse Leonardo Boff em entrevista a Frei Beto na revista Caros Amigos:
“A Igreja hoje é uma Igreja partida, dividida, e há dois modelos em conflito, que é o da Igreja-instituição, da Igreja-hierarquia, da Igreja-poder, que se estrutura em papa, cardeais, bispos, dioceses, paróquias e se reproduz com muita dificuldade, porque há cada vez menos padres para manter a reprodução dessa Igreja. Junto dela está surgindo um novo tipo de Igreja, que eu chamaria Igreja-rede-de-comunidades, que está assentada não no poder, mas na vida. Isto é, o diálogo fé/vida. Nas comunidades, nas associações de moradores, grupos que vivem a fé nos seus encontros e que têm sua força no arquétipo cristão, não na instituição, nas suas tradições, mas o cristianismo como uma instância de esperança, tendo como referência comum a Bíblia, e aberta para a sociedade. Mas não a sociedade portadora de poder de decisão, o pacto velho, quer dizer, a Igreja poder religioso se associa com o poder civil. Não, é a Igreja com as classes emergentes, com os destituídos, pobres, marginalizados, excluídos, que são a grande maioria. Então, pra mim, está se dando aí um novo pacto do cristianismo, no sentido dos primórdios, que era feito de escravos, de portuários, de destituídos, de soldados, e estamos vivendo esse tipo de cristianismo, que tem hoje uma dimensão mundial. Muito forte na África, na Ásia, muito forte no Primeiro Mundo: você vai à Alemanha, Itália, Estados Unidos, está cheio de grupos e comunidades do Terceiro Mundo que têm como referência a perspectiva libertária do cristianismo. A outra é o cristianismo da reprodução e é ocidental. É produto da cultura ocidental, de tal forma que não dá pra fazer a história do poder do Ocidente, reis e príncipes, sem fazer simultaneamente a história da Igreja.”
(Leia a entrevista na íntegra em:
http://carosamigos.terra.com.br/outras_edicoes/grandes_entrev/boff.aspVeja )
Do pouco que se pode observar, entretanto, pode-se dizer que a Igreja Católica Romana pode ser rotulada de tudo, menos de imobilista. Ela é móvel, apenas seus movimentos tem um “time” que nossa geração “fast” não está treinada para detectar.
Bento 16 é filósofo. Ele, melhor que qualquer um de nós, sabe que “tudo flui”.
Eu não poderia encerrar este ensaio sem a citação do próprio Boff, na última conversa que teve com Darcy Ribeiro, com este já às portas da morte. Darcy lhe dizia que lamentava não ter sido um homem de fé, que gostaria de acreditar que existe algo depois da morte.
Boff respondeu:
“Não se preocupe com a fé, porque Deus não se incomoda com a fé. Pelos critérios de Jesus, quem tem amor tem tudo.”
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JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 21/04/2005
Alterado em 21/04/2005