O SORRISO DA ESPERANÇA
O SORRISO DA ESPERANÇA
J.B.Xavier
Janeiro é um mês tradicionalmente ruim de vendas para nossa companhia. Mas ele tem um significado todo especial para mim. Foi exatamente num janeiro pouco promissor, que, há quinze anos, eu dei a guinada para a vitória.
Agora eu resolvera dar mais uma guinada nos destinos da empresa. Não poderia, portanto, ser outro o mês escolhido para anunciar minhas intenções a toda a companhia.
Foi, portanto, nos meados de Janeiro que resolvi promover a maior convenção já realizada na empresa. Estavam presentes todos os colaboradores – das diretorias aos garis – num total de 1.200 pessoas.
Eu assistia à convenção da cabina de projeção, porque nosso auditório era também um cinema onde muitas vezes projetávamos filmes de onde extraíamos lições para nosso dia-a-dia. Eu não cabia em mim de satisfação, ao ver o enorme recinto lotado de convencionais, vindos de todos os Estados do país. Em quinze anos eu conseguira transformar um pequeno e tímido negócio que eu iniciara numas das fases mais negras de minha vida, numa das maiores empresas fabricantes de tênis esportivos do continente. E me orgulhava mais ainda, por estarem presentes à convenção muitos dos meus primeiros colaboradores, como “seu” João, o atual Supervisor dos motoristas da empresa, por quem eu tenho especial admiração.
Apresentações desenvolviam-se céleres na grande tela. Volta e meia, entre gráficos, e explanações técnicas de nossos produtos, aparecia, em flashes rápidos, a imagem de um atleta, correndo pelas ruas da cidade, sempre filmado da cintura para cima. Volta e meia o close mostrava que era um homem de uns 35 anos, em cujo rosto havia a determinação dos vencedores. A despeito de nossos produtos serem usados por grandes estrelas do esporte, o atleta que aparecia na tela era um completo desconhecido. Todas as nossas reuniões traziam essas imagens - sempre do mesmo atleta - de maneira que os funcionários mais antigos já o conheciam muito bem.
Agora, entretanto, eu tinha outras pretensões. Chegara a hora das grandes ousadias. O fortalecimento da economia brasileira, e a lição de democracia que demos ao mundo, ao fazermos a transição pacífica de um governo de direita para um de esquerda, animaram-me a dar passos maiores. Minha intenção era instalar escritórios no exterior, e eu havia escolhido a Europa como ponto de partida. Não à toa, portanto, essa convenção era a mais importante que já acontecera na empresa, porque nela seria anunciada essa decisão, bem como os nomes dos que iriam para o escritório de Milão, cidade onde decidíramos iniciar nossas operações européias.
Havia sido um dia muito divertido e emocionante. A empresa contratada para organizar a convenção fizera um ótimo trabalho, e, através de muitas e modernas técnicas de comunicação, mantivera o nível de motivação dos convencionais sempre elevado.
Artistas famosos fizeram impecáveis apresentações especiais. Um cômico divertiu a todos com suas inspiradas piadas, e muitos antigos funcionários foram chamados ao palco para dar seus emocionados testemunhos do porque trabalhavam na empresa. Entretanto, o final da convenção, eu havia reservado para mim. Tal como há muito tempo, quando eu era apenas um endividado sonhador, eu decidira não delegar a responsabilidade pelo “grand finale” porque sabia que o sucesso de nosso futuro dependeria do estado de ânimo com o qual os convencionais voltassem para suas casas.
Como sempre acontecia em convenções desse tipo, notei que as pessoas que participavam delas pela primeira vez, ficavam intrigadas com a imagem intermitente do corredor que, volta e meia, invadia a tela, aparentemente sem fazer sentido.
Eu assistia à festa pela pequena janela de vidro da sala de projeções, esperando minha hora de ser chamado ao palco para encerrar a convenção. Logo após o final de uma linda canção cantada pela última cantora a se apresentar, apagaram-se todas as luzes e o auditório caiu numa escuridão total onde apenas um pequeno ponto de luz era projetado sobre a grande tela branca.
Era a deixa para minha entrada. Enquanto o locutor do evento anunciava minha presença, levantei-me e, muito emocionado pelas palmas que vinham da platéia dirigi-me ao palco, acompanhado por um holofote que desenhava um círculo de luz ao meu redor.
Nesse momento, a música Carruagens de Fogo irrompeu tonitruante e o ponto brilhante de luz da tela começou a se expandir lentamente, transformando-se gradativamente na figura do atleta corredor, em várias cenas do esporte. Ora ele aparecia recebendo medalhas, ora correndo entre os carros nas grandes avenidas, ora treinando na solidão de uma pista vazia...
A área onde eu deveria parar estava demarcada com giz branco, no chão. Dali eu não atrapalharia a projeção. Quando finalmente as palmas cessaram, e acenderam-se as luzes novamente, pude ver os milhares de olhos postos em mim, com uma admiração que me enchiam de emoção, mas que, verdadeiramente, eu não julgava merecer.
- Amigos! – comecei eu – Jamais julguei ser possível chegar aonde chegamos.
Mais palmas vieram da platéia, mas levantei as mãos e elas cessaram.
- Somos um dos casos de maior sucesso empresarial dos últimos tempos no país...mas, para chegar aqui tivemos um começo difícil... Há quinze anos, houve um Janeiro tal como este em que agora nos reunimos. O mês chegava ao fim. Trabalhavam comigo oito pessoas, algumas das quais vocês conheceram hoje. Eu tinha um sonho...Era tudo o que eu tinha. Estou mentindo! Eu tinha também muitas, muitas dívidas...
Um murmúrio de risadas abafaram minhas palavras. Quando o silêncio voltou, continuei:
- O mês chegava ao fim e eu estava preocupado com nossos resultados de vendas. Por isso eu seguia tenso em meu carro pelas ruas de desta cidade maluca. Como sempre, lamentando o trânsito e a loucura que é viver em uma megalópole. Meu destino era uma reunião onde, sabia eu, as dificuldades de negociação seriam enormes.
Esta era a última oportunidade da empresa de atingir o resultado comercial do mês, por isso essa reunião era crucial para mim. O fracasso daquelas negociações me deixaria impossibilitado de saldar uma dívida com um banco que me financiara alguns equipamentos que permitiram ampliar a produção. A não quitação dessa dívida, impossibilitaria a empresa de continuar operando. Ou eu fechava aquele negócio, ou estávamos quebrados! Eis porque eu viera pessoalmente à reunião, ao invés de enviar o vendedor. Como diz o provérbio, “o pênalti deve ser batido pelo Presidente do Clube”! Eu não queria ter que culpar alguém por nossa falência. Além disso, eu ainda trazia na boca o gosto amargo de uma recente derrota anterior. Por isso, confesso que estava com muito medo do que iria acontecer naquela reunião.
Fiz uma pausa e apanhei um copo d’água na pequena mesinha ao meu lado. Na platéia o silêncio era total. Apenas a música se ouvia, enquanto, na tela, o atleta continuava correndo pelas ruas da cidade. Então continuei:
- Repassei meus cálculos e recitei meu discurso, tentando me preparar para fechar o negócio, mas eu sabia que o principal de meus concorrentes não gostaria de perder essa oportunidade, e eu já havia perdido muitos clientes para eles. Aliás, eram essas perdas que estavam inviabilizando nossa empresa. Assim, por mais que eu tentasse me convencer que eu poderia ganhar aquela concorrência, eu, lá no meu íntimo, estava desanimado, e sabia que isso provavelmente não aconteceria. Faltava-me fé! Fé em minhas possibilidades, fé no meu produto...Faltava-me fé em mim mesmo!
Então, quando eu me preparava para estacionar diante do prédio onde aconteceria a reunião, vi ao longe, na calçada, em meio à multidão, um corredor se aproximando rapidamente. Ele serpenteava entre as pessoas, e, atravessando rapidamente a rua, passou diante de meu carro enquanto levantava a mão, e, com um sorriso, agradecia minha gentileza por ter eu parado para que ele pudesse atravessar.
Jamais vou esquecer aquele olhar e aquele sorriso. No rosto o cansaço, o suor de quem treina sem as mínimas condições materiais, mas no olhar a determinação de quem está pronto para conquistar o universo! Seu sorriso, visto por mim num relance, lançou-me luz e uma paz que eu julgava impossível existir num ser humano.
E lá se foi ele, correndo por entre a multidão. Quanto a mim, estacionei meu carro e fiquei por vários minutos pensando no corredor anônimo e na lição que ele me dera. Seu olhar apaziguou-me, e uma energia vinda sabe Deus de onde me tomou por inteiro. Uma descarga de auto confiança me atingiu como um raio, e empunhando minha maleta, caminhei até o prédio dando os mais decididos passos que já dei em toda a minha vida.
Jamais argumentei com tanta destreza, jamais transmiti tanta confiança, jamais deixei tão claro que aquele pedido era vital para mim, que um dia seríamos uma grande empresa e que não confiar em nós agora, poderia ser um péssimo negócio a longo prazo. Pude sentir na pele a vibração que minhas palavras causaram, e a fé que as pessoas presentes depositaram em mim.
Saí de lá com o contrato em minha maleta! A empresa estava salva!
Uma apoteose de aplausos seguiram-se às minhas palavras, abafando a música e impedindo-me de continuar. Quando, finalmente, eles cessaram, continuei:
- A primeira coisa que fiz quando saí daquela reunião, foi tentar encontrar o atleta que, apenas com um olhar e um sorriso, me devolveu a fé em mim mesmo. Encontrei-o dias depois, e adotei-o como símbolo de nossa empresa. Sob nosso patrocínio, ele venceu muitas provas, sempre tendo ao lado seu pai, que o adorava, incentivava e o empurrava para a vitória! Suas medalhas e troféus estão numa sala especial no clube da companhia, aberta à visitação pública.
Graças a Deus pude agradecê-lo em tempo pelo milagre que ele operou em mim! O atleta de que falo é este que os srs. estão vendo na tela...Infelizmente ele faleceu há alguns anos, mas talvez, sem ele, nossa empresa não existisse.
Novamente o auditório parecia vir abaixo com as palmas e assovios. Restabelecida a calma, um dos convencionais, que se identificou como estando apenas há algumas semanas na empresa, levantou-se no meio do auditório e perguntou:
- Sr. Presidente, somos fabricantes de tênis. Percebi que o atleta nunca aparece da cintura para baixo. Sendo da área de marketing, desejo parabenizá-lo pela excelente e original idéia de apenas sugerir que o atleta está usando nosso produto. Um excelente institucional, sem dúvida – completou o rapaz, sentando-se.
Um murmúrio correu pela platéia, enquanto eu abaixava a cabeça e sorria. Depois, falei:
- Meu jovem, quisera eu ter as idéias brilhantes que vocês têm. Mas não é esse o caso. Temos filme dele de corpo inteiro, sim!
Isto dizendo, levantei o braço, sinalizando para que projetassem outros filmes do atleta. Todos então puderam ver que ele tinha uma das pernas, mecânica. Todos na platéia puseram-se de pé, enquanto saudavam o atleta com uma ruidosa e demorada salva de palmas.
- Desejo chamar ao palco o Seu João, o Supervisor dos Motoristas, e pai desse verdadeiro herói. Foi a força, a fé, o crédito e a coragem que ele transmitiu ao filho, que o fizeram chegar aonde chegou. Seu filho perdeu a batalha contra o câncer, mas ganhou a batalha contra si mesmo.
Enquanto as palmas, gritos e assovios continuavam, abracei Seu João e gritei, golpeando o ar com os punhos fechados e apontando para a tela:
- Ele chegou aonde queria, e nós seguiremos seu exemplo, enquanto houver olhares e sorrisos que nos transmitam paz e nos incitem à vitória!
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JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 17/09/2009