O TESTE
O TESTE
J.B.Xavier
Olhei para as conchinhas com as quais um dia um índio engenheiro chamado Nhuamã, com idade para ser meu filho, me deu a maior lição de minha vida e decidi não abrir mão de tudo o que prometera a mim mesmo naquele distante dia, em que, em sua companhia, atravessei distraidamente uma praia, após a dramática demissão de meu último empego.
Agora, uma nova oportunidade de voltar ao mercado de tabalho me era oferecida.
Ainda tendo à mão o telegrama que me convocava para uma entrevista, eu pensava na importância que tinha aquele emprego para a seqüência de minha vida. Na verdade, eu precisava desesperadamente daquele trabalho.
Há quase um ano desempregado, minha situação financeira tinha se reduzido a farrapos. Juntamente com ela, meu relacionamento com meus familiares tinha piorado bastante e estava quase insustentável. A despeito de se dizer que dinheiro não é o mais importante, ele tem, sim, importância fundamental para a manutenção da dignidade, numa sociedade que avalia as pessoas pelo que elas têm, não pelo que são.
Fui demitido de meu último emprego quando estava no auge de minha carreira. Disseram-me um monte de baboseiras para justificar minha demissão, mas a verdade é que fui demitido por não ter me atualizado – me reciclado – como querem alguns, em tempo de continuar sendo útil à companhia. Confesso que eu não era lá essas coisas como companheiro, e meu ex-diretor me disse que eu era um elemento desagregador na companhia.
Na ocasião tive a sorte de encontrar um jovem que me conduziu por uma praia, e enquanto catava conchas coloridas ensinou-me uma das maiores lições que já tive em minha vida. Mas essa história eu já contei em outra ocasião e não desejo ocupar seu tempo, amigo leitor, com coisas repetitivas.
Basta que lhe diga que após conhecer esse jovem, eu modifiquei muitos dos meus hábitos de vida: Passei a considerar que sendo eu um ser único, devo ter, sem dúvida, algum valor. Passei também a prestar mais atenção às coisas belas que me rodeiam,e, principalmente, passei a valorizar as pessoas ao meu redor.
Mas - como se costuma dizer - na prática a teoria é outra! No mundo real, somos tentados a toda hora a vender nossos sonhos, e, conforme nossa necessidade, por um preço bem baratinho!
Então, após passar pela terrível experiência de ser demitido, uma das coisas que decidi foi nunca mais abrir mão dos meus princípios básicos de vida, éticos ou morais, nem que disso dependesse meu emprego. Digo isso porque volta e meia meu antigo trabalho me levava a procedimentos que se por um lado eram legais, por outro nem sempre eram éticos. Aliás essa linha divisória entre a legalidade e a ética é as vezes imprecisa e difícil de definir.
Mas não é fácil manter-se íntegro no mundo cão que nos rodeia e do qual dependemos. Mesmo assim, eu estava tentando, e já recusara algumas propostas de trabalho que, se as tivesse aceitado, haveriam de me reconduzir ao meu antigo hábito de violentar a mim mesmo.
Mas como explicar á minha família que um sujeito que precisava de trabalho desesperadamente dava-se ao luxo de rejeitar algumas propostas? Como faze-la compreender que minha integridade, recentemente recuperada, não estava mais à venda?
Foi pensando nisso tudo que tomei o avião, cuja passagem me havia sido enviada juntamente com o telegrama, e viajei até a cidade onde ficava a sede da empresa, para uma entrevista inicial.
Na tarde do dia seguinte, quando compareci ao local onde aconteceria a entrevista, eu estava calmo, mas aos poucos fui ficando tenso, ao ver a suntuosidade do edifício e da sala onde me instalaram à espera do entrevistador.
Quando cheguei já estavam na sala um homem bem mais jovem do que eu, e duas mulheres. Ele estava muito bem vestido e parecia um executivo em pleno esplendor da carreira. Era um jovem muito bonito, que parecia mais um modelo do que um executivo. Sua resposta seca ao meu bom dia enterrou minha curiosidade de saber se ele era também um candidato à vaga. Depois disso não tive oportunidade de lhe dirigir a palavra, porque ele ignorou completamente minha presença, fazendo com que me sentisse transparente contra o fundo, enquanto conversava animadamente com as duas mulheres, tendo na fala um forte sotaque inglês, embora falasse fluentemente o português.
Sorri interiormente, porque eu já havia sido assim, orgulhoso e confiante. Já havia impressionado muitas mulheres com meus conhecimentos de arte, e já causara muito sofrimento àquelas que por mim se apaixonaram inutilmente. Tempos de juventude febril, onde os fins justificavam os meios. Demorou para que eu descobrisse que são os meios que justificam os fins.
Uma das mulheres deveria estar beirando os quarenta anos. Era uma morena, elegante, sóbria e senhora de si. Ela espertamente acomodou-se na poltrona bem em frente ao jovem executivo, e cruzou as pernas de maneira que só ele pudesse ter uma visão aproximada dos tesouros que ela escondia. Pela atenção que ele lhe dispensava, percebi imediatamente que o jovem estava fisgado. Pobres homens!
Numa poltrona próxima, a outra mulher, uma loura muito jovem, beirando os trinta anos, deslumbrante e sensualíssima com seus lábios rubros e sua postura elegante, respondeu com um largo sorriso ao meu cumprimento, e sentou-se próximo a mim, passando a conversar comigo sobre os mais variados assuntos. Seu português escorregava constantemente, numa demonstração de que ela não era brasileira e não dominava o idioma.
Graças a ela, fiquei sabendo que eles também haviam sido convidados para a entrevista.
Fiquei impressionado e um pouco decepcionado. Impressionado porque vi que o nível dos candidatos era internacional, e decepcionado porque achei que a entrevista seria individual. Mas, enfim, talvez fosse alguma técnica de dinâmica de grupo em ação, pensei. O fato é que ao conhecer meus “adversários” na disputa pela vaga, minha preocupação aumentou. Eu já não tinha as mesmas certezas de antes. Minha demissão fizera-me mais consciente de minhas limitações.
Quanto mais eu observava os jovens mais me convencia de que seria muito difícil ganhar deles na disputa pela vaga. Eles tinham as fichas a seu favor: Juventude, boa aparência, segurança, elegância e refinamento. Pensei que talvez não tivessem a experiência que eu tenho, mas, concluí logo em seguida, a experiência tem sido o maior entrave para minha recolocação no mercado de trabalho! As empresas andam à caça de jovens como esses, que têm menos vícios que executivos maduros como eu. Além disso, eles custam mais barato, quer com os pacotes salariais quer com os treinamentos necessários ao seu desenvolvimento, porque têm menos a desaprender.
A espera durou pouco. Logo uma moça nos conduziu por um extenso corredor cheio de maravilhosas pinturas renascentistas.
Enquanto caminhava ela mantinha um enigmático sorriso burocrático nos lábios. Finalmente chegamos a uma grande porta de vidro. Suspirei e tratei de me preparar para o que me esperava. Fomos introduzidos em uma deslumbrante sala, onde tudo era refinado e de bom gosto.
Meu olhar parou sobre uma réplica da Pietá, que estava sobre uma coluna de mármore verde, a um canto, iluminada pela luz do sol que vinha dos grandes janelões. Era uma peça feita em jade, e deveria ser muito valiosa.
Ao nos ver entrar, um senhor levantou-se de sua escrivaninha e veio ao nosso encontro. Olhando-nos diretamente nos olhos. Ele apertou fortemente a mão de cada um de nós, enquanto nos convidava para sentar.
Sentamos os quatro numa espécie de sofá. Notei que a morena apressou-se em sentar ao lado do jovem executivo, enquanto a loira sentava-se entre ele e eu.
Bom, senhoras e senhores - disse o anfitrião com um forte sotaque espanhol - Meu nome é Martim. Sou o Diretor Geral da filial brasileira da empresa. Somos uma grande companhia de seguros e estamos desembarcando no Brasil.
- A maior do mundo – disse a morena.
- isso mesmo! Somos a maior companhia de seguros do mundo. Estamos á procura de um Diretor Operacional para atuar no Brasil. Começaremos nossas atividades atuando no mercado de seguro de artes. Para isso foi criada uma nova empresa que já está instalada em vários países, e cujo controle acionário pertence ao casal Häagstrom, herdeiros dos controladores da holding. Eles estão no Brasil e em breve os senhores terão oportunidade de conhece-los.
Atuaremos inicialmente no seguro de Museus, bibliotecas, coleções particulares e coisas assim. Os senhores e as senhoras são os profissionais mais experientes desta área que conseguimos encontrar. É bom que lhe diga que alguns dos processos seletivos de que participaram nos últimos meses foram conduzidos por outras empresas de recolocação sob nossa orientação. Portanto, queimamos etapas. Finalmente vocês quatro foram os escolhidos para a seleção final, que será conduzida por nossa cúpula, pessoalmente.
Fiquei embasbacado, ao pensar que já estava sendo avaliado há meses para esta vaga! Mas o homem continuou:
- Após tantos cuidados para nos certificarmos de que escolheremos a pessoa mais adequada, é justo que lhes informe que o processo de seleção para o qual os senhores e as senhoras foram convidados prevê etapas insólitas e testes não convencionais. Diante disso, todos vocês concordam em continuar?
Balançamos afirmativamente a cabeça, mas só percebemos o quanto Martim falava sério quando ele nos apresentou uma declaração de que aceitávamos continuar no processo de seleção, qualquer que fossem os testes a fazer, desde que não implicassem em riscos de danos físicos.
Após assinarmos o papel, ele continuou:
- Serei breve, porque a maratona à qual vocês serão submetidos começa depois de amanhã e será cansativa. Amanhã os senhores terão o dia livre. Aproveitem-no para conhecer a cidade. A companhia os brindará com 500 dólares, a cada u
m de vocês, para que possam se divertir. Era tudo o que eu tinha a lhes dizer...alguma dúvida?
Resolvi descontrair o ambiente.
- Posso trocar meus 500 dólares pela réplica da Pietá?
- Nem por sonho! – respondeu o homem sorrindo – essa estatueta tem história! O senhor gosta de esculturas?
- Muito! Especialmente as da Renascença – respondi - e a Pietá talvez seja seu ponto mais alto. Michelangelo usou uma ilusão de ótica para produzir esta escultura, e ao fazer isso, inovou a arte da perspectiva...
Martim limitou-se a sorrir, mas a loura ao meu lado apertou meu braço e disse:
- O senhor parece entendido no assunto...
- Apenas gosto de arte...e por favor, se puder evitar o “senhor” fará um favor ao meu ego...
- Bom – tornou Martim a falar - lembro-os de que estão sob contrato, e que a desistência do processo seletivo pode dar-se quando bem o desejarem...
- Não sei quanto aos demais, – respondi – falo apenas por mim, mas para ser franco, eu não tenho muitas opções. Este é o único processo seletivo de que estou participando, portanto tentarei o impossível para me sair bem nele...
Não sei bem porque eu disse aquilo! Normalmente eu teria dito que já participara de muitos processos e que confiaria em que me sairia bem. É o que normalmente dizemos para nos valorizar. Mas eu já havia decidido dizer o que tinha no coração, e se isso fosse bom, ótimo; se não, eu pelo menos ficaria tranquilo comigo mesmo, dizendo o que me ia na alma. Por isso resolvi ser franco.
Quando saímos daquela sala, estávamos os quatro mais descontraídos. A noite começava a descer. O Jovem executivo, então, contrariando a primeira impressão que eu tive dele, disse:
- Bom, amigos, o fato de concorrermos à mesma vaga, não nos torna inimigos! Que tal se esticássemos essa noite numa boate? Amanhã é nosso dia de folga!
Todos concordaram. Eu aceitei apenas para não ser estraga-prazeres, porque na verdade o que eu desejava era ficar no hotel assistindo a um bom filme na TV e preparando meu espírito para fosse lá o que me aguardava.
Na boate, o previsto aconteceu. Quando a madrugada já ia alta, a morena, depois de uns goles de Whisky, estava totalmente solta, e dançava dependurada no pescoço do jovem executivo, lânguida e suplicante por uma noite de amor.
A loira era mais discreta. Conversamos longamente, e muitas vezes tive que auxilia-la com o português, até que decidimos conversar em inglês. Então, fluentemente, ela demonstrou ter um conhecimento extraordinário do mercado de artes. Fiquei tão impressionado com sua segurança ao falar do assunto que não tive dúvidas de que se conhecimento de causa fosse o critério de decisão, ela certamente seria a escolhida.
Na verdade, ela parecia esperar uma iniciativa de minha parte, que desse início a uma maior aproximação. Considerei todas as vezes em que eu vivera situações semelhantes. Mulheres, sempre mulheres. Cama! É sempre o que a maioria dos homens pensa de uma relação entre um homem e uma mulher! Se era isso que ela pretendia, nesta noite ela ficaria decepcionada.
Felizmente ela não era do tipo agressiva, como a morena, porque eu desistira de viver essas mentiras momentâneas. Mas era uma mulher lindíssima. Ocorre que eu já havia desistido de manter relações que machucam ao invés de alegrar. Vazios da alma que relacionamentos relâmpagos não conseguem preencher.
Finalmente concordamos todos em voltar para nossos hotéis. A companhia nos instalara em hotéis diferentes, certamente para proteger nossa privacidade. A morena, já muito alcoolizada teve que ser carregada para o táxi, e depois para seu apartamento no hotel.
Depois nos despedimos, e cada um tomou o seu caminho. Não combinamos nada para o dia seguinte, por isso pude ficar á vontade para visitar a cidade, que é famosa pelos museus que possui. Fotografei monumentos, visitei galerias, e até assisti a uma peça musical que era executada no Teatro Municipal gratuitamente. Foi um dia extraordinário para mim, onde pude soltar-me das tensões que a pressão de meu desemprego me causava. Pude fazer o que gosto, e ainda com dinheiro no bolso, coisa que há tempos eu não via. Cheguei ao hotel lá pelas 23:00 e após um banho fui direto para a cama, porque o dia seguinte prometia ser árduo.
Na manhã seguinte compareci pontualmente para o início das atividade. Aguardei na mesma sala da vez anterior, porém nenhum dos meus “concorrentes” estavam lá, sinal de que deveriam ter marcado horários diferentes com cada um de nós.
Em poucos minutos, numa pontualidade que me alegrou, fui introduzido na mesma sala onde já estivera. Martim me recebeu com um sorriso e me fez sentar no mesmo sofá.
- Bueno – disse ele em seu “portunhol” - por onde devo começar? Eu tenho duas notícias para lhe dar. Uma boa e uma ruim...qual delas você deseja ouvir primeiro?
- Comece pela boa, por favor, assim me dará forças para resistir à segunda!
- A notícia boa é que pelo seu esforço em ter chegado até este ponto do processo seletivo, a pequena preciosidade que você tanto desejou no outro dia, é sua - a réplica da Pietá...
Um vazio me invadiu o estômago. Percebi logo que aquilo era um prêmio de consolação. Em outra circunstância eu teria pulado de alegria por tão maravilhoso presente, mas agora eu sentia que estava sendo elegantemente dispensado.
- O próprio casal Häagstrom achou que você merece ficar com a estátua...e olha que ela vale um bocado de dinheiro...é feita de jade...
A porta atrás de mim se abrira mas nem prestei atenção. Devia ser a recepcionista para me conduzir de volta.
- E...qual é a notícia ruim? – perguntei.
- É que você tem apenas 10 dias para assumir seu cargo de Diretor Operacional da empresa no Brasil – disse Martim sorrindo.
Nada me preparara para aquela notícia. Nada. Absolutamente nada!
- Mas... e os testes de que falamos...? - perguntei trêmulo e gaguejante...
- Você e a outra candidata já estavam aprovados para o cargo...apenas o casal Häagstrom desejava testa-los pessoalmente...eles têm seus próprios métodos...e ela foi reprovada por eles...
- Parabéns! - Disse uma voz atrás de mim – o senhor foi aprovado com louvor ontem à noite...gostamos muito de sua franqueza, lealdade e honestidade. Gostamos também de seu interesse pelas artes.
Voltei-me e vi o jovem executivo e a jovem loura com os quais eu havia ido à boate. Fiquei confuso.
Isto dizendo o jovem executivo me estendeu algumas fotos onde eu aparecia visitando museus e galerias no dia anterior.
- Queira nos desculpar se o seguimos e fotografamos o dia todo...precisávamos ter certeza de que seus gostos pessoais estavam em sintonia com sua função na empresa...
- Eis o casal Häagstrom – Disse Martin - herdeiros dos controladores da holding e os maiores acionistas de nossa companhia...
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JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 22/11/2005
Alterado em 21/02/2021