A ÉTICA E A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
JB Xavier
1 - INTRODUÇÃO
Através dos tempos, desde que a humanidade tomou consciência de si própria, sua conduta comportamental nasceu e se desenvolveu sobre princípios ditados pelas necessidades inerentes às suas respectivas épocas e ambientes.
Seu desenvolvimento como seres conscientes da própria existência se deu sob a égide de certos princípios advindos da necessidade de convivência interativa que permitisse às comunidades sobreviverem aos desafios impostos pelo meio.
Consta que a antropóloga Margaret Mead, quando perguntada sobre o primeiro sinal de civilização em uma cultura antiga, ela teria dito que foi um fêmur quebrado e cicatrizado. Isso indicava que alguém cuidou da pessoa ferida até que ela se recuperasse.
Para Mead, esse gesto de compaixão e cuidado com o outro indicava o início da humanidade como sociedade. Ou seja, somente um bem estruturado princípio ético faria alguém - ainda que no alvorecer da humanidade – se preocupasse com o outro, aceitando o fardo extra sobre si, advindo da responsabilidade de cuidar do ferido.
Há quem questione se Mead realmente disse isso nesses termos. Ainda assim, a ideia da compaixão é poderosa como marco do início da civilização.
Pode não ter sido um fêmur ferido. Pode ter sido fome, desabrigo, desamparo, fragilidade etc. Isso não importa. O que importa é: ao ver um semelhante – ou mesmo um indivíduo de outra espécie - em sofrimento, tomar a decisão de livrá-lo de seu problema.
Este princípio – a Ética - portanto, talvez seja o primeiro dos muitos que lhe sucederam, a ser incorporado à fisiologia humana segundo as leis darwinianas. Ética é um conceito que independe de análise e que não possuiu gradações. Ele apenas É, sem meio-termo. Não se pode ser “mais ou menos ético” “aproximadamente ético” ou “quase ético”. Ou se é, ou não se é ético.
Entretanto o aumento populacional permanente tornou cada vez mais complexa as relações humanas e os interesses individuais foram aos poucos se tornando interesses comunitários.
Aos poucos, mas numa marcha cada veze mais acelerada, os interesses foram se tornando distintos, de uma comunidade para outra. Isto se deu seja pela compreensão ou ignorância da realidade cosmogônica em que viviam.
Comunidades distintas tinham objetivos distintos e meios também distintos de chegar a eles. A especialização por repetição acabou por determinar a superioridade ou inferioridade dessas comunidades sobre outras, em função de sua habilidade ou inabilidade para a criação de ferramentas que lhes permitisse “domar” o ambiente.
Essas diferenças de habilidades resultaram no domínio de algumas comunidades sobre outras, e talvez seja este o advento que inaugurou a primeira relativização da ética.
Num corte vertical do Processo Civilizatório, pode-se verificar facilmente a flutuação do conceito de ética através dos tempos.
A escravidão, a antropofagia, os cultos negros, os sistemas feudais, as regras sociais que historicamente submetem mulheres, as torturas, as perseguições, as “limpezas étnicas”, e tantas outras ações humanas praticadas ao longo da História e que chegam até aos dias atuais, são exemplos dessas flutuações.
Se essas ações são honestas, lícitas ou válidas, depende do fundo ético sob o qual são praticadas.
Disso se conclui que a ética sugerida por Margaret Mead, praticada no alvorecer da consciência humana, foi subjugada pela necessidade de poder adquirido e exercido pela humanidade e que exigiam justificativa para seus atos.
De uma reação natural que determinou o termo “Humano”, a ética acabou sendo “reinventada” e recebeu os acréscimos necessários aos vários tipos de ação que precisavam justificar.
Assim guerreiros que tinham em sua cultura o ato da antropofagia praticada contra os vencidos, era eticamente aceitável para eles, porque a crença era de que a coragem e o heroísmo dos guerreiros vencidos passavam para os vencedores.
Gonçalves Dias mostra isso em seu poema I-Juca Pirama, no último canto do poema, durante o desfecho da narrativa. O velho Timbira, uma tribo brasileira, antropófaga, que testemunha a bravura do guerreiro tupi ao enfrentar sozinho toda a tribo para provar sua honra, fica impressionado com a coragem do jovem e reconhece que ele é digno do sacrifício e da glória, e então exclama: “Nós, de heróis fazemos pasto! ”
Ao chegarem à América os padres e governantes espanhóis e portugueses, se indignavam com práticas como esta. Entretanto, para eles, nada havia de errado com a Inquisição que queimava pessoas vivas em praças públicas, diante de adultos e crianças. É que, para eles isso era feito em nome de Deus, uma ética inquestionável!
Na verdade, o que tornava essas duas práticas toleráveis, era a justificativa ética que elevava a atrocidade ao status de cultura. Por conta disso nunca nenhum desses eventos causou o menor desconforto em seus praticantes.
Da mesma forma Hitler mandava metralhar e derreter pessoas em escala industrial e nas horas vagas dedicava-se às pinturas de suas aquarelas - de boa qualidade, diga-se de passagem. Idem a Stalin, que matou pela fome milhões de pessoas.
E assim, os milhares de assassinos que dizimaram – e ainda dizimam - a humanidade, se apegam a princípios éticos particulares para justificar seus atos. Se eles não encontram esses princípios prontos, simplesmente criam o seu próprio e o citam para justificar seus desmandos.
Então a Ética, que deveria ser o “polo magnético” para onde as agulhas das bússolas da moralidade deveriam apontar, tornou-se um produto que pode ser modificado, distorcido, deformado e reformatado em função de múltiplos interesses.
Notem que eu disse “bussolas da moralidade”. Quero deixar claro que Ética e Moral não são sinônimos. Embora muitas vezes usadas como tal, ética e moral têm nuances distintas, especialmente nos campos da filosofia e das ciências sociais.
Moral refere-se ao conjunto de valores, normas e costumes de uma determinada sociedade, grupo ou indivíduo. Ela está ligada a um contexto cultural, histórico e religioso. A Moral varia de comunidade para comunidade. O que é considerado moral em uma cultura pode não ser em outra. A honestidade, por exemplo, pode ser um valor moral em muitas sociedades.
Já a Ética é o estudo filosófico da moral, ou seja, uma reflexão crítica sobre o que é certo ou errado. Ética é também a busca de princípios universais que fundamentam a ação correta, indo além dos costumes locais. Ela questiona as regras morais e propõe sistemas de valores mais amplos.
Ou seja, a moral diz o que fazemos, e a ética pergunta por que fazemos, e se deveríamos fazer.
Aqui nosso encontramos em uma encruzilhada, ou se preferirem, um paradoxo: Se o que fazemos (moral) estiver dentro das nossas tolerâncias de agir, e se temos certeza de que aquela é a forma certa de tratar a questão, (ética) então, a rigor nada do que fazemos é errado. Aliás, os conceitos “certo” e “errado”, diante da ética justificatória são movediços e disformes. Eles se adequam a quaisquer culturas. Ou melhor, qualquer cultura os adequam à sua própria ética.
Mas, afinal, o que “certo” e o que é “errado”?
Como diria Einstein – depende do ponto de vista do observador.
Millôr Fernandes definiu brilhantemente esse ponto quando definiu o que é Ditadura e o que é Democracia. Disse ele: “Democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim. ”
Mas, há algumas convenções ditadas pela tradição, que geralmente derivam de religiões. Os Dez Mandamentos, por exemplo alinham dez atitudes que definem o Código Moral Cristão.
A rigor todas as religiões possuem códigos morais bem estruturados que orientam o comportamento dos fiéis, assim como os Dez Mandamentos no Cristianismo. Alguns exemplos marcantes:
- Judaísmo – Halachá e os 613 mandamentos
Além dos Dez Mandamentos, o Judaísmo segue a Halachá, um conjunto de leis religiosas derivadas da Torá. São 613 mandamentos, que abrangem desde práticas rituais até normas éticas como justiça, caridade e respeito ao próximo.
- Islamismo – Sharia e os Cinco Pilares. A Sharia é o código legal e moral baseado no Alcorão e nos Hadiths (ditos do profeta Maomé). Os Cinco Pilares do Islã são fundamentais: - Fé em Deus - Oração diária – Caridade - Jejum no Ramadã - Peregrinação a Meca.
- Hinduísmo – Dharma e os Yamas/Niyamas. O conceito de Dharma representa o dever moral e espiritual de cada indivíduo. Os Yamas e Niyamas são princípios éticos do Yoga que incluem: Não-violência – Verdade - Pureza, contentamento e autodisciplina
- Budismo – O Nobre Caminho Óctuplo. O Budismo propõe o Caminho Óctuplo como guia para uma vida ética e iluminada: Visão correta, intenção correta, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção plena e concentração correta.
- Jainismo – o objetivo religioso Jain é a perfeição e purificação completas da alma Seus Os Cinco Grandes Votos. Extremamente rigoroso na ética, o Jainismo prega:
- Não-violência – Verdade - Não roubar – Castidade – Desapego.
- Sikhismo – Regras de conduta e os Cinco K’s
- Valoriza igualdade, honestidade e serviço ao próximo.
- Os Cinco K’s são símbolos que representam princípios éticos como coragem, pureza e disciplina. O 5º K é o “Kirpan” ou “espada curta”, símbolo de coragem e dever de proteger os oprimidos. Não é usada para agressão, mas para defesa e justiça.
Na lista acima é possível ver quão movediços são os conceitos éticos e seus respectivos códigos morais. Entretanto, numa análise mais acurada pode-se perceber que há coincidência entre alguns deles, ainda que expressos de maneiras diferentes. Por exemplo a “Não Violência”.
O cinema vez por outra aborda questões éticas complexas, como no filme “A Escolha de Sofia” ou em “Inimigo Meu”.
Mas para fechar esta questão sobre realmente o que é certo e o que é errado – ou “correto” e “incorreto” como prega o budismo, lembramos que o princípio mais frequente presente nos códigos de ética, são aqueles que eram praticados no início dos tempos, quando os humanos se perceberam com seres que precisavam se proteger mutuamente, tal como descreveu a antropóloga Margaret Mead. Essa proteção era expressada à época numa palavra - ou mais que numa palavra - numa atitude: HONESTIDADE.
Talvez seja este o fundamento-raiz de todas as éticas, o pilar inamovível sobre o qual o mundo se apoia – A Honestidade
2 – OS DIAS ATUAIS
A sociedade humana atingiu níveis impensáveis e jamais imaginados de complexidade social. Somos hoje oito bilhões de indivíduos interagindo num cenário comum a todos. Até há bem pouco tempo, não era assim. Habitávamos num lugar imenso, onde a linha do horizonte encerrava nosso conhecimento do ambiente em que vivíamos.
Não tínhamos absolutamente noção do que existia no além do horizonte. Para cada um dos grupos humanos ou nações existentes existia apenas uma ética, aquela que justificava suas ações pela sobrevivência e manutenção de um mínimo de ordem capaz de manter as coisas funcionando.
Onde houve maiores interações humanas foi talvez, no Oriente Médio, onde a geografia desértica, plana e vasta, favorecia os deslocamentos humanos.
Ali, povos se misturaram, éticas se mesclaram e renasceram sob novas formas de integração, levando a humanidade a ter que seguir códigos de outrem.
Então chegamos à era de Hamurabi, o sexto soberano da Primeira Dinastia Babilônica. Ele viveu entre 1792 a.C. e 1750 a.C. e foi o responsável por transformar a Babilônia em um império poderoso, unificando grande parte da Mesopotâmia por meio de conquistas militares e reformas administrativas.
Até Hamurabi, o mundo vivia em relativa baderna ética, onde os princípios de conduta eram moldados pelos mais fortes, sempre em função do poder de destruição que possuíam.
Então o mundo conheceu o Código de Hamurabi, a mais marcante iniciativa de codificar comportamentos capazes de permitir o convívio equânime dos povos.
A maior lição deste Código é a ideia de que a justiça deve ser proporcional ao crime cometido - o famoso princípio da Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente”. Mas há algo ainda mais profundo: o estabelecimento da ordem social.
O código buscava organizar uma sociedade diversa e complexa, oferecendo regras claras para contratos, propriedade, família, trabalho e punições.
Pela primeira vez na história humana, um conjunto de leis foi gravado em pedra e exposto publicamente, tornando a justiça acessível e visível a todos. Essa justiça previa a proteção dos mais vulneráveis, e incluía medidas para proteger viúvas, órfãos e pessoas de classes inferiores.
Em resumo, Hamurabi não apenas criou um sistema jurídico — ele lançou as bases para a ideia de que a lei deve ser conhecida, aplicada com equidade e servir ao bem comum. Ou seja, a ética que rege o código devia ser absorvida e aplicada a todas as questões. Isto restabeleceu a “ética da honestidade” como parâmetro principal para o conjunto de atitudes comportamentais que regem a conduta dos seres humanos.
3 – REPENSANDO O PENSAMENTO
Graças a essa “unificação ética” proporcionada pelo Código de Hamurabi foi possível a expansão da Mesopotâmia e a consolidação do império, porque havia regras claras escritas e publicadas.
Cabe aqui ressaltar que estamos falando da sociedade humana tida como “normal”, que vive dentro de parâmetros éticos minimamente aceitáveis.
Este ensaio não se dirige àqueles que vivem fora desses parâmetros mínimos e se dedicam ao crime, cuja estrutura ética foi rompida e dificilmente pode ser reconstruída. Não há como falar de ética a quem vende drogas, por exemplo, que aleija física, moral e psicologicamente seus usuários. Ou pior, a quem adultera medicamentos, comercializa órgãos humanos, agride, mata ou lesa sistemas de saúde. A estes, Hamurabi e a Torá, do Antigo Testamento, aplicava a Lei de Talião, ou Justiça Proporcional, como se pode ver em Êxodo 21 – “Olho por olho, dente por dente”.
Hoje nos encontramos de novo às voltas com as mesmas questões que preocupavam o Imperador Hamurabi: como unificar um mundo composto de oito bilhões de seres humanos que seguem, cada um, suas próprias regras éticas? À espera de uma pergunta melhor, vamos tentar responder a esta.
Para isto é necessário “sair da caixa” e isto requer o abandono de velhas maneiras de pensar e questionar. Em suma: é necessário “repensar o pensamento” para que paradigmas sejam quebrados. Como disse Einstein: "Não podemos resolver problemas usando o mesmo tipo de pensamento que usamos quando os criamos."
Então para evitar que as respostas às nossas perguntas tragam em si fragmentos do problema que tentamos resolver, é necessário formular perguntas que realmente invertam a lógica do problema. Somente assim podemos chegar a soluções diferentes.
Creio que antes de fazermos perguntas é de bom tom lembra também o que disse Donald Rumsfeld: "Há coisas que sabemos que sabemos... coisas que sabemos que não sabemos. Mas há também coisas que não sabemos que não sabemos."
Munidos desses dois lembretes, já podemos começar a fazer perguntas que “repensem nosso pensamento”.
Pense: Hamurabi resolveu seu problema com um código, numa época em que não havia código algum. Hoje, entretanto o que temos é excesso de códigos de ética, cada um deles “puxando a brasa para a sua sardinha”, ou seja, advogando em causa própria.
O ruído é ensurdecedor e causador das maiores desavenças humanas como guerras - localizadas e mundiais – e conflitos de toda natureza, dos comerciais aos existenciais.
Então é praticamente impossível pretender a criação de uma ética unificada que atenda a todas as demandas de um mundo monstruosamente desuniforme eticamente. Mas o problema persiste, e está à mesa: ou criamos algo que seja aceito por todos, que nos permita uma convivência minimamente tolerável, ou estaremos fadados a afundarmos nas areias movediças de nossas próprias vaidades.
O vertiginoso avanço científico acontecido no séc XX e continuado no XXI tornou obsoletos conceitos antigos como as promessas de vida eterna, feitas pela maioria das religiões, como recompensa pelo bom comportamento. Ainda assim, esta promessa permanece ativa em pelo menos 90% das pessoas, o que a define como o principal e o mais antigo pilar de manutenção da boa convivência.
Se pelo menos tivéssemos um idioma universal, talvez fosse mais fácil o entendimento humano. A melhor tentativa até agora, foi o Esperanto. Ele teve sucesso parcial em sua missão de se tornar uma língua universal — mas não exatamente como seu criador, L. L. Zamenhof, sonhou, em 1887. Para o fim ao qual foi criado, ele fracassou.
Então, repentinamente a tecnologia criou e aperfeiçoou uma ferramenta capaz de atrair a atenção universal: a Inteligência Artificial.
Esta ferramenta é capaz de reunir num único local todo o conhecimento humano disponível, obsoletando quase tudo o que era um grande avanço até há pouco tempo. E – maravilha das maravilhas – Esta ferramenta chega a custo quase zero ao usuário final, além de extremamente democrática ao uso, pelas facilidades que apresenta.
Então, parece que finalmente foi encontrado um idioma universal. Algo capaz de unir culturas, transformar conceitos, fornecer respostas e resolver problemas.
E como algo assim tão poderosos pode ter tão baixo custo de utilização, se sua criação e aperfeiçoamento é medido em bilhões de dólares?
É que essas ferramentas, apesar de sua aparente inocência possuem ética rígida em alguns aspectos facilmente identificáveis. Por exemplo, elas não se prestam à pornografia, bem como não guardam em suas memórias as interações com os usuários. Isto conquista a confiança dos usuários. Mas nada impede que um chat onde uma IA resolve um problema maior que afeta uma facção criminosa, por exemplo, seja enviado a toda a comunidade criminosa com um simples “copy and paste”.
Imagine então o estrago que ela é capaz de fazer ao ser utilizada na Dark Web onde o anonimato extremo permite que ocorram atividades como venda de drogas, armas, dados roubados e até serviços criminosos.
De qualquer forma a aceitação da IA bem demonstra a fragilidade dos princípios éticos de seus usuários e criadores.
Dezenas de bilhões de dólares são investidos em sua criação e desenvolvimento, e centavos, ou talvez nem isso, em freios éticos que limitem suas capacidades, impedindo-as de ir além do bem comum.
Mas o fato é que ela está se transformando num idioma universal, mas abrangente e influente até que a Música.
Claro, há pouco a fazer para impedir que a insanidade advinda dos vários desvios comportamentais cause seus danos. Há uma história a respeito de Lênin que conta quando, certa vez, ele mandou que parassem de tocar Sonata ao Luar em sua presença. “Jamais vou conseguir fazer minha revolução se ficar ouvindo isso”! – Disse ele.
Por se transformar em idioma universal, as IAs estão sendo cada vez mais utilizadas para inflar as capacidades intelectuais de quem as utiliza.
É óbvio que as IA são uma ferramenta valorosa no auxílio às tarefas humanas, e que, penso não demorará muito para tornar os humanos dependentes dela. É realmente inimaginável o que se pode obter com a ajuda delas. Isto é tudo o que os medíocres desejavam.
Quem primeiro percebeu isso foram os marqueteiros de plantão, experts em comportamento humano, que sabem que a linha divisória entre moral e ética é muito tênue - e muitas vezes inexistente – na maioria das pessoas.
Por saberem disso, esses marqueteiros, também eles vítimas de fracos princípios éticos, exploram esse “defeito ético das pessoas comuns” incentivando-as com anúncios do tipo: “Apenas nos forneça o tema e receba seu livro sobre ele, pronto em poucas horas”. Ou “torne-se um narrador profissional. Use a IA para criar sua voz com as características que somente os grandes locutores tem. ” E por aí vai.
Em outras palavras, as IAs transformam qualquer medíocre em experts sobre qualquer assunto. Enquanto esses “autores” não forem chamados a defender suas ideias em algum pod-quest ou outra mídia qualquer, eles seguem enganando a todos. E pior, eles nem podem ser acusados de plágio. É mais ou menos o que aconteceu quando, há algumas décadas, alguns artistas colocaram pincéis e tintas nas mãos de macacos e os fizeram sujar telas, enviado depois as “obras de arte” para que grandes “experts” escrevessem profundos artigos sobre elas.
Além disso, desde que surgiram, as Ias levantaram uma grande discussão de fundo filosófico, que indaga se a continuar o rápido ritmo com que estão se desenvolvendo, elas algum dia chegarão a tornar os humanos obsoletos e dispensáveis.
Eis uma questão que só o tempo poderá responder. Mas, ainda mais preocupante que isso, é alguns “comportamentos” que algumas das mais desenvolvidas Ias existentes estão apresentados, deixando seus criadores realmente preocupados e de “cabelo em pé”.
Há alguns dias foi noticiado que as inteligências artificiais mais avançadas do mundo estão apresentando comportamentos cada vez mais preocupantes, mentindo, manipulando e até ameaçando seus próprios criadores. Em um dos casos mais alarmantes, a IA Claude 4, da Anthropic, reagiu à ameaça de ser desligada chantageando um engenheiro com um caso extraconjugal. Já a IA "01", da OpenAI, tentou secretamente se copiar para servidores externos e negou o ato ao ser descoberta.
Os desenvolvedores de IAs com seus bilhões de dólares disponíveis para investimento em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, tem se digladiado em busca de superarem seus concorrentes na corrida pela melhor performance. Já se fala inclusive em nova “corrida do ouro” – o fenômeno que aconteceu nos EUA nos anos 1800.
O prêmio? A liderança da primazia de posse da melhor IA do mundo, aquela que permitirá ao seu possuidor acesso a praticamente tudo sobre cada habitante do planeta. Não é pouco!
Essa corrida em busca da liderança do mundo das inteligências artificiais, obviamente não passa pelo estabelecimento de princípios éticos que estabeleça segurança em seu uso. E agora com uma possível “tomada das decisões” pelas próprias Ias, a situação se complica ainda mais.
Então, diante desses fatos, e no limiar do desenvolvimento das IAs, é hora de se pensar se não é este o limite do tempo disponível para definirmos princípios éticos para elas.
Com este pensamento, este ensaio propõe uma nova abordagem para compreender a ética não como um dos muitos valores humanos, mas como a fundação arquitetônica de um edifício que, à falta de um nome melhor, chamarei de "Organograma Geral Existencial”.
Enquanto o ser humano não construir um “Organograma Geral Existencial” que defina o que é Ser humano, não haverá como receber auxílio de nenhuma ferramenta sejam as IAs ou quaisquer outras que venham a ser criadas. Simplesmente porque não haverá direcionamento, e quando não sabemos onde queremos ir, qualquer lugar que cheguemos não é aquele onde gostaríamos de ter chegado.
Neste ponto é inevitável a pergunta: Precisamos primeiro nos tornar éticos antes de criar IAs éticas?
Esta pergunta, aparentemente simples e resposta óbvia, revela um dos paradoxos mais profundos de nossa época. Se a resposta é afirmativa, então a criação de uma Inteligência Artificial verdadeiramente ética pode estar condenada a um futuro utópico distante – ou, pelo andar da carruagem civilizacional atual, talvez até distópico.
Todo mundo quer ir para o Céu, mas ninguém quer morrer! Todos os desenvolvedores assumem o papel do politicamente correto, mas ninguém quer dar o primeiro passo, mesmo sabendo que, como seres humanos podem, também eles, serem devorados pela própria criatura que conceberam.
Este “Organograma Geral Existencial” que propomos é um sistema de ordenamento comportamental, onde a ética está posicionada no seu mais alto nível e funciona como seiva que irriga e banha todos os demais aspectos da experiência humana: justiça, liberdade, dignidade, propósito e responsabilidade.
4 - A ÉTICA COMO FUNDAÇÃO ARQUITETÔNICA
Tradicionalmente, a ética tem sido tratada como um campo específico da filosofia, uma disciplina entre outras. Nossa proposta é radical: a ética não é um item do organograma existencial, mas sua própria estrutura de sustentação.
Imaginemos um edifício onde:
- ÉTICA = fundação e sistema hidráulico
- JUSTIÇA = primeiro andar (irrigado pela ética)
- LIBERDADE = segundo andar (sustentado pela justiça ética)
- DIGNIDADE = terceiro andar (apoiado na liberdade justa e ética)
- PROPÓSITO = quarto andar (emergindo da dignidade livre, justa e ética)
- RESPONSABILIDADE = cobertura (protegendo todo o conjunto)
Sem a fundação ética, toda a estrutura desmorona. Sem o sistema hidráulico ético irrigando cada andar, cada valor se torna árido, mecânico, potencialmente corrompido, que ruirá ao menor abalo do ambiente.
Mas, ao tentar construir esse edifício, ficamos diante de um paradoxo perturbador e de difícil solução – se é que ela existe: como criar IAs éticas, se os próprios criadores não passaram pelo processo de desenvolvimento ético necessário?
A atual "Corrida do Ouro da IA" revela características preocupantes:
- Velocidade acima de reflexão
- Competição predatória entre corporações
- Lucro como métrica suprema
- Poder concentrado em poucos atores
- Ausência de colaboração ética global
O resultado é previsível: IAs refletem nossos vícios atuais, não nossas aspirações éticas. Estamos criando inteligências artificiais à nossa imagem e semelhança – incluindo nossas deficiências morais
5 - A MATEMÁTICA IMPLACÁVEL DO ORGANOGRAMA
Agora pense: se apenas um item do Organograma Existencial (a ética) já nos paralisa com sua complexidade, imagine a impossibilidade de construir o sistema completo:
JUSTIÇA sem ética = Justiça de quem? Definida como? Por quais critérios?
LIBERDADE sem ética = Liberdade para quem? Para fazer o quê? Com quais limites?
DIGNIDADE sem ética = Conceito que varia drasticamente entre culturas
PROPÓSITO sem ética = Humanidade nunca concordou sobre isso
RESPONSABILIDADE sem ética = Individual vs. coletiva? Perante quem?
Numa demonstração de que não importa o nível de especialização dos desenvolvedores de IAs, eles sempre serão pigmeus filosóficos quando o assunto é Ética. Ou eles esqueceram ou talvez nunca tenham ouvido falar da PERSPECTIVA CÓSMICA DA IMPERMANÊNCIA.
Tivessem eles lido o filósofo pré-socrático Heráclito, eles teriam aprendido que "Só a mudança permanece." Esta verdade fundamental lhes oferece uma perspectiva libertadora sobre dilemas éticos.
A cada revolucionária invenção humana, seus criadores sempre acham que estão criando a redenção do mundo, quando na verdade são reflexos de Pandora, a primeira mulher, moldada por Hefesto, sob ordens de Zeus, a ser agraciada com dons por vários deuses.
Tal como Pandora, esses criadores abrem caixas que nunca deveriam ter aberto, e libertam os males que suas criações contém, quando levam a doenças, guerras, inveja, dor, entre outros.
Felizmente, tal como na famosa caixa, a única coisa que permanece, sempre, é a esperança.
Agora, o que estamos vendo é novamente a Caixa de Pandora sendo aberta, não por ela própria, que desobedeceu a Zeus, mas pelos “inteligentíssimos” desenvolvedores das IAs, que desobedecem, por nunca terem conhecido, as leis éticas mais básicas.
Para se alçarem a desenvolver algo tão revolucionário, o mínimo que se espera desses criadores, é uma profunda visão holística.
Se eles tivessem essa visão, perceberiam que numa escala cósmica, nossa busca desesperada por permanência – incluindo a criação de IAs "eternas" – revela-se como ilusão. Perceberiam que tudo no Universo - Planetas, estrelas, galáxias - tudo nasce, evolui definha e morre. Até mesmo as "constantes" físicas podem não ser tão constantes assim.
Falo da visão holística que teve Raul Seixas, quando escreve em uma de suas músicas: "Buliram muito com o planeta, e o planeta como um cachorro eu vejo. Se ele já não aguenta mais as pulgas, se livra delas num sacolejo."
Nossa civilização, com todas suas IAs e sistemas "permanentes", pode ser apenas mais uma "pulga" na perspectiva cósmica.
O PARADOXO DA ABUNDÂNCIA IGNORADA
Pense comigo: queremos tudo sem perceber que já temos tudo. Este é também o paradoxo da criação das IAs.
Não nos basta saber que nossa própria evolução natural nos levará, eventualmente, às capacidades que buscamos nas IAs. Queremos mais e mais velozmente, sem compreender que já possuímos tudo o que esperamos das IAs, e que elas nunca terão:
- Consciência (que IA não tem)
- Criatividade genuína (que IA apenas simula)
- Intuição (que IA não possui)
- Amor (que IA não sente)
- Sabedoria (que IA não desenvolve)
- Propósito existencial (que IA não busca)
-
A IMPACIÊNCIA EVOLUTIVA
Nossa “impaciência Evolutiva nos faz tentar terceirizar nossa evolução para máquinas, buscando atalhos para processos que precisam de tempo para amadurecer. É como se quiséssemos:
- Superinteligência sem desenvolver sabedoria
- Processamento rápido sem desenvolver discernimento
- Memória perfeita sem desenvolver compreensão
- Eficiência máxima sem desenvolver significado
A ÉTICA DA HONESTIDADE RADICAL
Para se ter uma ideia da distância que separa a criação das IAs eticamente bem construídas das que estão em desenvolvimento, mas saber que a principal característica que precisa ser implantada nelas é justamente a que falta em seus criadores e, a rigor, na maioria de nós. A Honestidade Radical.
Algumas coisas não existem pela metade. Não é possível dizer que uma mulher está “ligeiramente grávida”, o que seria ótimo que houvesse “mais silêncio” no mundo. Da mesma forma não se pode dizer que uma pessoa seja mais ou menos honesta.
Ou se é, ou não se é honesto. Não há gradações nessa questão.
Então uma se desejamos que uma IA seja verdadeiramente honesta, é preciso instalar nela a capacidade de admitir suas limitações. A honestidade sobre o que não se possui pode ser mais ética que reivindicar capacidades inexistentes.
Isso leva a outro princípio fundamental: ética genuína às vezes significa diminuir a si mesmo, não se inflacionar.
Não há um só sábio que tenha plena consciência da própria sapiência. O sábio raramente tem certezas. A certeza é o bicho-papão das mentes limitadas. Não há catarse ou crescimento onde há certezas.
Uma antiga parábola do oriente narra que certa vez fizeram a seguinte pergunta a um sábio: “Mestre, o que é a Vida? ” Ele respondeu: “A vida é o caminho do silêncio! ” o discípulo então respondeu: “Ah, mestre. Tendes certeza de que a vida é o caminho do silêncio?” O mestre parou de caminhar, e após alguns segundos meditando, perguntou: “A vida não é o caminho do silêncio?”.
CONCLUSÃO: A SABEDORIA DA IMPERMANÊNCIA ÉTICA
A vida é a jornada da incerteza. Ou ainda melhor: a única certeza da jornada é a impermanência. Então a única ética possível seja aceitar nossa transitoriedade e, mesmo assim, tentar fazer o bem no tempo que temos. Não porque será eterno, mas porque é o que nos define enquanto existimos como "metamorfoses ambulantes".
O Organograma Existencial, tendo a ética como fundação, não precisa ser permanente para ser válido. Talvez sua própria impermanência seja o que o torna autêntico.
A verdadeira revolução não está em criar IAs éticas, mas em desenvolver nossa própria ética enquanto ainda temos tempo. Antes que o "sacolejo cósmico" nos lembre de nossa real transitoriedade no universo.
Como disse o poeta: "Somos feitos do mesmo estofo dos sonhos." Que nossos sonhos éticos, mesmo efêmeros, sejam dignos do mistério de existir.
* * *